Como surge a intersubjetividade? – Lacan contra Balint
No início de seu ensino, Jacques Lacan não estava preocupado em propor novos conceitos ou desenvolvimentos teóricos inovadores para a Psicanálise. Seu interesse principal era resgatar a essência da teoria e da técnica psicanalíticas que, do seu ponto de vista, havia sido desvirtuada pelos analistas pós-freudianos. A esse projeto, Lacan deu o nome de “retorno a Freud”. Em outras palavras, o psicanalista francês achava que seus colegas estavam fazendo tudo, menos psicanálise.
Por conta disso, durante quase 10 anos de seu “Seminário”, Lacan se dedicou a ir aos textos de Freud e dos autores pós-freudianos e, comentando-os, mostrar o que, segundo ele, seria a psicanálise verdadeira, a intuição original de Freud, e a psicanálise falsa, composta de enunciados teóricos e técnicos que estavam no caminho oposto àquele que o pai da psicanálise havia proposto.
A escola da relação de objeto
É nesse contexto que devemos situar a crítica que Lacan faz a Michael Balint, psicanalista húngaro, no seminário do ano acadêmico de 1953-54, dedicado ao comentário dos escritos técnicos de Freud. Balint é um dos representantes de uma corrente psicanalítica pós-freudiana que ficou conhecida como “escola da relação de objeto”. Tal corrente teria como fundamento as idéias de Melanie Klein, as quais se contrapunham às teses da filha de Freud, Anna. Ora, a discordância entre as autoras se dava em relação à questão acerca da existência de relações de objeto desde o nascimento. Para Anna Freud, que seguia o ponto de vista de seu pai, tais relações só apareceriam num estágio posterior do desenvolvimento do bebê, pois inicialmente a libido da criança estaria concentrada totalmente em seu ego (autoerotismo). Já para Klein, desde o início da vida o bebê estaria se relacionando com objetos, sendo o primeiro deles o seio. É óbvio que Anna Freud não ignorava o fato de que o bebê tinha contato com o seio. Ela, no entanto, não via por que considerar esse contato como uma “relação de objeto”, pois, segundo ela, o bebê se relacionaria com o seio como se esse fosse uma parte de si mesmo e não como um objeto externo.
Essa divergência pode parecer demasiado insignificante se não atentarmos para suas implicações no nível prático da intervenção analítica. Com efeito, ao dizer que o bebê não estabelece inicialmente relações de objeto, Anna Freud está admitindo a inexistência de transferência com crianças menores e, em decorrência, a impossibilidade de uma análise com bebês a partir dos mesmos princípios da análise de adultos. Melanie Klein, por seu turno, acreditava firmemente na possibilidade de transferência com crianças menores e, para sustentar isso, precisava supor a existência de relações objetais desde o início.
Amor pré-genital e amor genital
Balint, portanto, é um dos autores que decorre da escola da relação de objeto. Suas teses todavia, não papagueiam as de Melanie Klein. Conforme a leitura que Lacan e seus alunos fazem do livro “Primary Love and Psycho-analytic Techinics”, uma coletânea de artigos escritos por Balint entre 1930 e 1950, o autor defenderia a idéia de que nós teríamos dois tipos de relação objetal ao longo da vida. Antes da entrada na fase genital, experimentaríamos uma relação com nossos objetos marcada por um amor pré-genital. O que significa isso? Durante a vigência dos estágios pré-genitais da libido, os objetos que nos cercam seriam tomados por nós apenas como objetos que satisfazem necessidades, ou seja, como coisas que apaziguam um determinado desconforto e nos proporcionam prazer. Não estaríamos nem aí para os sentimentos e pensamentos do objeto; não lhe outorgaríamos o estatuto de sujeito. Vejam bem: Balint está dizendo que passaríamos toda a nossa infância pré-genital nos relacionando dessa forma com nossos pais, irmãos e outras pessoas. Ao advir o estágio genital da libido, após o período de latência, teríamos acesso a outro tipo de relação objetal, marcada, enfim, pelo reconhecimento de que o objeto também é uma pessoa, um sujeito, ou seja, alguém que, como nós, igualmente possui necessidades.
Mas essa mudança aconteceria? Qual elemento faria com que passássemos de uma relação com o outro apenas como objeto para um relacionamento com um objeto ao qual reconheceríamos também uma subjetividade? Balint não o explica. O analista húngaro faz parecer que, do seu ponto de vista, tudo ocorreria naturalmente, como se, de repente, o sujeito despertasse para o reconhecimento do outro como sujeito. Aliás, conforme a leitura de Lacan, Balint diria que os sinais desse reconhecimento, a saber: a ternura, o respeito e a consideração, teriam sua origem justamente nos estágios pré-genitais! Trata-se de um contra-senso, pois, como vimos, na pré-genitalidade a relação com o objeto não comportava aqueles traços. Em suma, para Lacan, Balint se enrola, e o faz porque negligencia a existência do registro simbólico.
O sádico precisa de um sujeito
Se admitirmos que no período pré-genital nos relacionamos apenas com objetos que saciam nossas necessidades, como quer Balint, não conseguiremos explicar, afinal de contas, como a partir do estágio genital conseguimos reconhecer o objeto como sujeito. É esse o argumento de Lacan. E para eliminar esse impasse, o analista francês defenderá a tese de que o reconhecimento do outro como sujeito se dá desde o início. Para demonstrá-lo, Lacan recorrerá inicialmente à fenomenologia da perversão.
Ora, a descoberta freudiana reivindica que a criança é um ser polimorficamente perverso, ou seja, tem o potencial para o desenvolvimento de todas as perversões imagináveis. Isso ocorre porque nela a sexualidade ainda não foi regulada pela cultura. Nesse sentido, agem na criança diversas pulsões (as chamadas pulsões parciais) que, ao serem tomadas como vias principais de manifestação da sexualidade na vida adulta, serão consideradas como perversões. Uma dessas pulsões é o sadismo, isto é, o gozo com o sofrimento infligido ao objeto. Ora, se analisarmos a pulsão sádica na criança a partir de Balint, teremos que o objeto da pulsão, no caso o outro ao qual se aplica sofrimento, está funcionando para o sujeito apenas como um objeto de satisfação dessa necessidade pulsional. No entanto, Lacan mostra que não pode ser assim, pois a fenomenologia do sadismo mostra que a condição para que a pulsão sádica se manifeste é que o outro diga “Não, não faça isso comigo!”, ou seja, que o outro resista. Ora, para que o outro resista, é preciso que ele se comporte não como objeto, mas como sujeito para o sádico!
O que Lacan está dizendo, portanto, é que se a perversão sádica no adulto pressupõe uma relação intersubjetiva, a manifestação da pulsão parcial na qual ela se fundamenta também deve ser uma relação intersubjetiva. Em síntese, mesmo se nos ativermos ao registro imaginário da perversão, da relação desregulada e cambiante entre dois indivíduos, a intersubjetividade está presente.
Vamos jogar xadrez?
Não obstante, o elemento que servirá de condição para a intersubjetividade desde o início será a linguagem. Balint utilizava, para demonstrar sua tese de que para a criança nas fases pré-genitais o objeto não seria reconhecido como sujeito, o exemplo de frases fortes que as crianças dizem com toda a tranqüilidade do mundo como “Mamãe, quando você estiver morta, eu farei isso, isso e isso…”. Para Balint, frases como essa confirmam suas idéias de que a criança não está nem aí para a subjetividade do outro, servindo-se dele apenas como objeto de satisfação. Para Lacan, trata-se de uma interpretação equivocada, pois, segundo ele, a fala da criança expressaria exatamente o contrário.
Ao dirigir-se ao objeto materno a partir da palavra “mãe” e ao supor a possibilidade de sua morte, a criança, para Lacan, já estaria se relacionando com a genitora não mais como uma coisa que lhe satisfaz, mas como um significante com o qual o seu significante “eu” se relaciona. Assim, por sua submissão comum à linguagem, ambos se constituem como sujeitos.
Para entender melhor essa idéia, tome o seguinte exemplo: pense na linguagem como o jogo de xadrez e nas peças do tabuleiro como os significantes. Ora, o sujeito, que é quem movimenta, só possui aquelas peças específicas para jogar e cada uma delas só tem significado dentro do jogo. A rainha só é rainha no tabuleiro. Caso alguém que não conheça o xadrez a pegue por acaso, poderá utilizá-la como um singelo objeto de decoração e não como a peça de um jogo. Assim também são os significantes: mudam de significado conforme o contexto em que se encontram.
Outra constatação: o jogador, ao mexer as peças, é limitado, pois é obrigado a representar sua estratégia apenas com aqueles elementos. Ele não pode entrar no jogo e dar xeque-mate; é forçado a utilizar as peças. Além disso, não pode inventar novas peças – são as regras do jogo. Em decorrência, torna-se possível saber a estratégia que um jogador utilizou numa partida jogada há 200 anos atrás se tivermos acesso ao registro das peças que ele movimentou e em que sequência o fez.
Nosso desejo, analogamente à estratégia do jogador de xadrez, também está submetido aos significantes que a linguagem nos oferece, de modo que só podemos nos fazer representar, num mundo de linguagem como é o mundo humano, através desses elementos. Por isso. Lacan dirá que sujeito é aquilo que um significante representa para outro significante, isto é, o nosso ser é um efeito da linguagem. No nosso exemplo, diríamos, de maneira análoga, que a estratégia do jogador de xadrez é a relação produzida entre um movimento e outro do jogo.
Pois bem, ao nomearmos alguém como mãe, pai, etc. é como se estivéssemos chamando aquela pessoa para jogar o xadrez da linguagem conosco, ou seja, a se fazer representar, tal como nós próprios, pelas peças do tabuleiro. Em outras palavras, no ato da nomeação, estamos reconhecendo o outro como sujeito, pois estamos admitindo a sua inserção na linguagem. É por isso que Lacan afirma, nessa crítica a Balint, que a condição para o reconhecimento do outro como sujeito é a possibilidade que o indivíduo tem de se servir da linguagem, possibilidade que lhe é outorgada bem precocemente.
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